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Crônica

O insuportável Thu-thé.
João Wilson Savino Carvalho, 31.05.2015
Thu-thé era insuportável porque era extremamente brigão. É bem verdade que ele só conseguia ser assim porque tinha pares tão brigões como ele. Um era exatamente o meu irmão, Wilibaldo, e o outro era o Paraíba, que tinha esse apelido mais por conta do nome de uma loja da família dele que pelo sotaque.

Para o Wili, bastava chama-lo de Billy Balde, e para o Paraíba bastava imitar um sotaque nordestino. Para o Thu-thé  não  precisava nada. Podia ser uma derrota na brincadeira de bandeirinha (jogo em que você precisa pegar a bandeira do grupo adversário sem ser tocado por nenhum deles), numa briga de galo (disputa-se pulando em um pé só, batendo de ombro, com o objetivo de desequilibrar o adversário), ou mesmo sem motivo algum. A verdade é que a presença de qualquer um desses três era garantia do fim de qualquer brincadeira. Dois deles brigavam e os demais, de atores passavam a espectadores, e terminávamos o sábado ou o domingo (no resto da semana nós trabalhávamos – naquela época isso era um orgulho, não um crime) assistindo uma briga que não tinha mais fim.
É que a rigorosa ética da molecada não permitia que nenhum dos contendores pegasse um pau ou qualquer tipo de arma, ou que intervisse na briga um irmão mais velho ou amigo. Tinha de ser no mano a mano, sem apelação, sob pena de ser o infrator execrado pela turma inteira, como covarde. Afinal, nosso território vinha das proximidades da Praça Barão do Rio Branco até o Poço do Mato, e fazia fronteira por um lado com o dos moleques do Laguinho, e pelo outro, com o dos moleques do Igarapé das Mulheres. Por conta disso, para fazer parte da nossa turma, um garoto precisava manter sua conduta rigorosamente dentro das regras não escritas do grupo. Muitos anos depois, lendo os clássicos “Os meninos da Rua Paulo”, do húngaro Ferenc Molnár e “Capitães da areia”, do brasileiro Jorge Amado, eu entenderia melhor como funcionava tudo aquilo.

Como nos clássicos da literatura, tínhamos uma área só nossa, a circunvizinhança do Cine Macapá, onde a nossa base era a sede dos professores, um enorme prédio eternamente em construção, com uma imensa área onde sempre se encontrava um providencial monte de areia e um espaço aberto para um campinho de futebol. Ou seja, um paraíso para os moleques duma época ainda não dominada pela matrix de hoje.

Era um grupo bem hierarquizado. Os grandões já se empavonavam para as meninas e não se misturavam com a gente de jeito nenhum. O grupo intermediário era uma espécie de meio-termo. Convivia conosco, que éramos os menores, por falta de opção. Mas eles ditavam as regras e prestavam contas às mães, que nunca perdiam ninguém de vista, sempre prontas para repor a ordem na base da chinelada. Os pais, claro, não precisavam bater em ninguém, afinal, bastava um olhar severo. 
Não bastasse tudo isso, nós, os menores, que éramos obrigados a usar o cabelo com corte militar (dava menos despesa para os pais), e ficar levando “selo” dos mais velhos o tempo todo, ainda tínhamos que suportar o briguento do Thu-thé. O Wili era meu irmão e eu tinha que suportá-lo mesmo. O Paraíba morava na área comercial e nem sempre estava no meio do nosso grupo. Mas o Thu-thé não, esse morava bem ao lado do Cine Macapá, e até quando íamos trocar revistas em quadrinhos antes da sessão de cinema, aos domingos, lá estava ele procurando confusão.
Mas, uma tardinha, estávamos eu e o Riba beirando a turma dos mais velhos, aproveitando para ouvir piadas chulas e histórias fantasiosas de namoradas que nem existiam, quando passou um japonês em uma bicicleta velha, levando em uma das mãos um paneiro de tomates bem maduros. Naquela época nada era politicamente incorreto, e tirar graça com sotaque de japonês era coisa muito natural. Daí aconteceu o que era de se esperar: um dos mais velhos chamou o passante por um daqueles nomes que soam tal como a língua japonesa, mas em português resultam numa obscenidade. Em troca recebeu o arremesso certeiro de um tomate, que explodiu no autor da graça e espirrou em todo mundo. Uma das cenas mais hilárias que já vi. A chuva de pedras que se seguiu fez o japonês abandonar o paneiro de tomates para poder fugir, e ele ficou lá, na beira da rua de piçarra vermelha, sem chamar muita atenção.
Quando conseguimos parar de rir, eu e o Riba, passamos a filosofar. Ele falou algo sobre como as guerras seriam mais divertidas se os soldados lutassem arremessando tomates podres uns nos outros, e daí chegamos a conclusão inevitável: precisávamos jogar um tomate daqueles em alguém. Mas em quem? No Thu-thé, claro! Afinal, de todas as pessoas que conhecíamos, ele era o que mais merecia.
No dia seguinte era um sábado, dia em que brincávamos de guerra de buçú na praia da Fortaleza. O buçú era caroço grande e muito abundante em Macapá naquela época, que na praia ficava encharcado e mais ou menos mole. Era muito difícil acertar em alguém com aquilo, já que os moleques estavam sempre preparados. Mas com um tomate, e escondidos no mato do barranco vermelho por cima da prainha, teríamos no Thu-thé um alvo fácil. E o mais divertido é que ele nem saberia de onde os petardos estariam vindo.
Disfarçamos os tomates em sacos de papel e fomos correndo para a prainha que ficava na frente da Fortaleza São José de Macapá, na época em que ainda não existia o imenso aterro que cobriu o igarapé e a velha doca, evitando que um dia o Amazonas derrubasse o forte. Tomamos a estradinha contornava a fortaleza pelo lado direito e saia bem em cima da descida para a praia. Bem antes disso encontramos o Thu-thé. Ele vinha soturno e triste, nem parecia o mesmo. Escondemos os tomates a toa porque ele nem olhou direito pra gente. Disse apenas “tiraram a nossa praia. Os milicos ficaram com ela... Nunca mais vamos brincar lá...”
Foi uma premonição. Depois uma cerca fechou os dois lados da praia, e nem vadeando o igarapé conseguíamos mais entrar. Depois foram as instalações de um clube e décadas de ocupação privada daquele espaço público. Felizmente não conseguiram concluir antes do final da ditadura um enorme galpão que encobriria até a vista da na Fortaleza. Ao mesmo tempo começou a atuação das instâncias legalmente encarregadas da proteção do patrimônio histórico e seu entorno, e finalmente a prainha foi devolvida à população. Pena que agora nem é mais uma prainha, já que, em função do aterro, restou dela menos de um quarto.
E o Thu-thé? Bom, da última vez que ouvi falar dele foi quando estudávamos em Belém. Alguém contou que ele estava com um grupo de estudantes bêbados e amanhecidos em um bar das proximidades da Praça do Relógio quando passou um grupo de halterofilistas dirigindo-se à academia. O Thu-thé teria se levantado, se aproximado da porta fazendo um movimento semicircular com um dos braços, desafiando: “E Ahêê seus sapos cururu, querem encarar uma briga? Meu grupo contra o de vocês?” Felizmente, para ele e para os outros estudantes magrelos, foi solenemente ignorado pelos ginastas.

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As Cores de Cuzco.

João Wilson Savino Carvalho (2009)

Não sou exatamente uma pessoa preconceituosa, muito pelo contrário, até incentivo muito o movimento GLS (ainda se diz assim? É este o termo politicamente correto, hoje?). De fato, sempre digo aos meus amigos que fazer parte do Movimento deve ser muito interessante, já que a pessoa recebe uma pressão danada da sociedade, uma gozação danada dos amigos (ou inimigos próximos!), a única que compreende e dá apoio geralmente é a mãe (mãe é mãe!), e o cara não larga! Deve ser danado de bom! Por mim todos os meus amigos se tornariam adeptos praticantes...

Mas então, um dia viajei para Cuzco, no Peru, realizando uma velho sonho, o de conhecer MachuPicchu, o último refúgio inca, nunca encontrado pelo conquistador espanhol. Uma viagem tenebrosa, descendo Macapá-Belém-Brasília-São Paulo, e em seguida subindo São Paulo-Lima... Passei três dias em Lima, num albergue em Miraflores que era uma loucura (embora muito limpo), a bom bater pernas pela cidade. Fiquei maravilhado. Os cambistas balançam maços de dólares em pleno centro comercial e não são assaltados... O pessoal da terceira idade dança até tarde da noite uma espécie de calipso misturado com reagae em uma pracinha linda, e não está nem aí pro frio... Tudo muito, muito barato...

Mas meu objetivo era MachuPicchu e as ruínas incas, então viajei mais uma vez de avião de Lima a Cuzco, uma viagem curta e agradável. O aeroporto de Cuzco é muito bem organizado, inclusive com recepção ao turista, e, pasmem, oferecendo roteiros turísticos com todos os preços médios dos passeios, para evitar que o turista desavisado seja explorado por eventuais espertalhões locais... Até um conjunto musical devidamente paramentado recebia o povo que chegava... Mas o frio um pouco mais forte que em Lima me fez pegar um taxi correndo para procurar um hotel.

E aí conheci o Álvaro, o típico faz-tudo dos filmes do século vinte. Motorista de um velho táxi, guia turístico e sindicalista militante. Foi logo me perguntando, em excelente portunhol, por que eu queria ficar em um albergue na parte alta da cidade, se eu gostaria mesmo era de andar a pé pelo centro de Cuzco, se eu não estava acostumado a carregar aquela monstra mochila na altitude... Tive que concordar, afinal o cara sabia o que estava falando... Em seguida me perguntou se eu havia reservado o trem para MP, e se eu sabia da “huelga” no dia seguinte, que pararia todo o setor de transportes... Me recomendou que nos tratássemos logo de comprar a passagem de trem, me explicou que não valia a pena pegar a primeira classe, por que o trem era o mesmo... Me ofereceu um albergue super barato bem próximo à Praça de Armas... Enfim, me deu todas as dicas necessárias para que eu não perdesse tempo e aproveitasse o máximo minha estada em Cuzco.

Impressionado com a dialética de meu novo amigo, acatei todas as sugestões. E de fato o albergue era barato, muito bem localizado e razoavelmente confortável, só não tinha nada de calefação, e houve noites que eu quase me embrulhei com o colchão (bem feito, pra nunca mais viajar sozinho).

Mas, enfim, satisfeito com o albergue, tão logo me alojei, saí para fazer o obrigatório reconhecimento do perímetro, uma ou duas ruas para cada lado, um ponto de referência que seja reconhecido na cidade... O que se deve fazer sempre em uma cidade estranha...

E aí o susto quando vi uma enorme bandeira arco-iris bem na fachada do hotel. Estava lá, tremulando orgulhosa como dona do pedaço. Pensei imediatamente: o fdp do motorista me trouxe para um albergue temático... E ele parecia um cara tão legal... Desconfiado, comecei a observar a fauna... Duas argentinas lindas me pareceram muito íntimas... Um grupo de brasileiros que jurava que ia descer de bicicleta pela Bolívia... Não, estavam mais para malucos! Uns suíços loiríssimos, tão bonitos, me pareceram suspeitos... Bom, talvez eu estivesse mesmo em um hotel temático, mas ninguém ia saber, então, tudo bem.

Pela manhã, surpresa maior ainda. A bandeira estava por toda parte. Mas quando a vi tremulando, enorme, na frente de um movimento grevista, bem ao lado da bandeira vermelha, não resisti mais. Escolhi o grevista com uma cara boa e perguntei com muito tato. Era a bandeira de Cuzco, herança do império inca, que os cuzquenhos ostentam com muito orgulho.

Me senti ridículo, preconceituoso e tolo, com minha cabeça da década de setenta. Eu, que sempre afirmei não ter qualquer tipo de preconceito... Prometi contar essa história pra todo mundo. Serve para descobrir os meandros e as facetas do preconceito, e enfrentá-lo de fato.

João Wilson Savino Carvalho – Julho de 2009. wilsoncarvalho@unifap.br.


 
 
 

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