O que é a gratidão?
- João Wilson Savino Carvalho
- 31 de mai. de 2017
- 3 min de leitura

Gratidão.
Da primeira vez em que estive lá o Rio de Janeiro me pareceu o jardim da Alice no País das Maravilhas e eu decidi dedicar-me intensamente à sua exploração. Afinal, naquela época, o Rio ainda era a Cidade Maravilhosa, e eu, estudante oriundo da provinciana Macapá, estava mesmo maravilhado. Aristóteles dizia que a felicidade de um ser é exercitar aquilo que ele faz de melhor, e daí concluía que um cavalo seria feliz estando livre para correr enquanto que e o homem seria feliz por estar livre para pensar. Concordo em parte. Afinal, quando observo o esforço de um cão preso a uma coleira em seguir um rastro de odor deixado no chão por outro animal, sinto que o exercício dos sentidos é tão fundamental quanto o pensar. E certamente o sentido mais importante é a visão, já que o nosso pensamento está repleto de imagens que são configuradas visualmente e por meio de metáforas, como a da luz clareando a escuridão, ou da árvore que se desgalha em múltiplas consequências, ou do rio, com seus afluentes. Enfim, o simples exercício da visão é que nos dá especial prazer em descobrir paisagens, recantos, reminiscências do passado de uma cidade, que sempre tem um espírito muito próprio. Aliás, o Rio de Janeiro é especial nesse sentido.
Um segundo sentido que nos traz grande prazer é a audição e esse em um aspecto muito sutil. De fato, se a visão nos dá imagens que ajudam a compreender o mundo de uma determinada forma, a audição nos proporciona o conteúdo do pensar, colocando-nos de pronto em contato com o espírito de uma cidade, pelas frases soltas que ouvimos ao acaso e que dão conta do quotidiano e da cultura específica de um povo.
Em uma cidade, eu gosto especialmente de andar a toa e sem compromisso, sentando em um barzinho, experimentando as coisas aqui e ali e, principalmente olhando, vendo, muito e de tudo. E eu reputo essa atitude em uma cidade desconhecida como o meio, por excelência, para entrar em contato com a cultura singular de um povo e de um determinado lugar. Aliás, porque não dizer, de apreciar realmente uma cidade, em todos os sentidos da palavra apreciar e com todos os sentidos que nos permitem apreciar alguma coisa.
E eu exercitava intensamente os meus sentidos flanando pelo Rio de Janeiro, a qualquer folga e pretexto, da glamorosa Ipanema ao intrigante Pavãozinho, por todo o meu raio de ação, um perímetro razoável em torno do local onde eu morava, um edifício antigo bem ao lado da escadaria do Cantagalo.
Eis que, uma bela tarde, passando perto de três cariocas típicos e em sua atividade preferida, um bate-papo de barzinho, ouvi mansa e claramente, o seguinte vaticínio: “Pois então, quando uma pessoa perde o senso da gratidão, pode-se ter certeza que perdeu a última de suas características de ser humano”. Claro que, a partir dai, não vi mais nada, imerso que fiquei em minhas reflexões. Pensava nos clássicos, nos existencialistas, inclusive nos ateus. E que ódio por não ter parado para ouvir a réplica!
O que caracterizaria essencialmente um ser humano? Qual a extensão do conceito de “gratidão”, como atributo do humano? Poder-se-ia chamar de “gratidão” o sentimento de vínculo que aparece em animais irracionais, como a fidelidade canina ou como na história do leão que poupou a vida do cristão que anteriormente havia retirado um doloroso espinho de sua pata? Nesse sentido, é possível que a gratidão escravize? Mas, se alguém faz o bem para alguém visando retribuição, é caso de gratidão ou de interesse?
Entretanto, ao observar o olhar de um animal, que, ao ser bem tratado retribui com um imenso amor pela criatura a qual se vincula, independentemente de qualquer outra recompensa, de uma coisa tenho certeza: a gratidão humaniza até os animais. E sua ausência tem efeito oposto: desumaniza os humanos. E nesse sentido, tinha razão o carioca que pronunciou a frase que tanto me impressionou. Porque da criatura que perde o senso de gratidão tudo se pode esperar, principalmente o pior.
O homem é um animal lógico? Nada mais lógico do que retribuir o bem com o bem. É a moral que define a essência do humano? No bem, maior de todos os valores éticos, está embutida a gratidão. E até mesmo a consciência moral, que na sociedade é tão importante a ponto de definir a diferença entre o sociopata e o homem comum, se expressa com maior clareza no sentido de gratidão.
Foi muito bom para a minha vida ter descoberto tudo isso, e partir de uma simples frase solta, no meio de uma conversa perdida... E eu nem voltei para agradecer ao autor da frase, que me deu de graça esse mote para tão importante reflexão. Bom, menos mal que tenho consciência disso. Sou grato, mas nada devo a ele. Se não fosse assim, não seria gratidão.
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