Pasárgada (Conto premiado em Barueri/SP)
- João Wilson Savino Carvalho
- 17 de out. de 2019
- 11 min de leitura
Acordou sobressaltado. Também, pudera, tinha passado a noite sonhando com a cidade onde viveu em sua outra vida. Pelo menos, foi o que pensou. O sonho era realmente intrigante. Nunca tinha sonhado assim. Causava até uma certa angústia. Não conseguia entender por que se sentia assim, se tinha apenas sonhado com uma cidade...
O problema é que ele tinha vivências daquela cidade. Como podia explicar que andava em uma rua de uma cidade que nunca viu e sentia saudades de uma juventude que nunca foi a sua? Que olhava uma velha casa e sentia saudades de uma infância totalmente diferente da sua. Chegava a ver a casa fechada onde sabia ter vindo ao mundo pelas mãos de uma parteira. Olhava pelo portão de ferro, via o muro lateral, o interior do terreno, sentia mesmo uma gostosa nostalgia. Via-se com um graveto na mão, criança, com seis ou sete, riscando o musgo que se formava no muro, junto à terra do jardim. Tudo era muito úmido, e ele vestia uma roupa antiga...
Decidiu escrever tudo. Ou melhor, descrever. Não seria difícil já que a conhecia tão bem a tal cidade onde teria morado em uma vida pretérita. Achava até que já tivera uma vista panorâmica dela. Não sabia se do alto de um edifício, de um morro ou de sobrevoo.
Nela, a maioria das casas era baixa, não existiam edifícios de porte. E lembrava mais de detalhes da orla, o que não seria de estranhar, pois em uma cidade, é sempre o que mais atrai os aventureiros. Só que ele nem era um aventureiro. Aliás, muito pelo contrário, detestava imprevistos. Morria de angústia ante qualquer quebra de rotina.
Especialmente interessante era a parte próxima ao rio, àquela que conhecia com mais detalhes, talvez porque fosse o pedaço que, a vida toda, mais gostava de percorrer. Lembrava bem que descia em uma rua estreita, uma ladeira leve e longa, que, como as paralelas a ela, terminava numa pista estreita e sinuosa, parecida com uma que existia em um trecho de um bairro de Belém do Pará, chamado Arsenal. Essa pista, ou rua, na parte mais movimentada, tinha um casario de um lado, e de outro, uma espécie de quartel ou qualquer outra instituição militar. Era um prédio muito antigo, em estilo colonial, com uma comprida fachada em arcos. Na parte da frente havia palmeiras e, embora não fosse possível ver a parte de trás, vedada por uma fileira de árvores, sabia que lá estava o rio.
Nessa mesma pista, a que passava na frente do quartel, seguindo à direita, havia uma área cercada e ajardinada, talvez uma espécie de jardim botânico. O rio continuava passando atrás, só que um pouco mais afastado. A seguir vinha uma espécie de porto para barcos pequenos, onde o rio já passava bem próximo das casas. Tudo ali era de um só pavimento e, nessa parte, quando se atravessava os galpões que encobriam a vista para o rio, dava para ver as docas onde os barcos estavam atracados.
Retornando ao centro da cidade, na sequência dessas docas, estava a parte mais cuidada da cidade, provavelmente onde moravam os ricos. Lá existia um prédio grande, mas não alto, que poderia ser um shopping, se fosse uma época ou lugar onde existissem shoppings, ou poderia ser enorme mercado, um lugar que ele já havia entrado, mas que não conseguia identificar direito o que era aquilo.
Lá perto existia um conjunto de prédios, poderia ser um conjunto habitacional, mas os prédios eram muito próximos uns dos outros. Lembrava particularmente de um deles, pintado de amarelo, com as colunas e vigas em um tom de abóbora. Essa composição de cores para um edifício, que ele normalmente achava alegre até demais, nesse caso resultava triste porque o prédio, como os outros, vivia empoeirado. Era um lugar onde ele estivera várias vezes, mas a lembrança não era boa. Algo lhe dizia alguma coisa muito ruim acontecera ali.
Voltando na direção do quartel, se seguisse na mesma pista que o separa do casario, encontraria um bairro de periferia, onde as ruas eram de terra batida, que ia se tornando cada vez mais arenosa à medida que se aproximava da praia, que agora era de mar. Era uma areia dura, com um matinho ralo por cima, muito parecido com a grama regional que ele conhecia. As casas, à medida que se afastava do centro, começavam a rarear cada vez mais, e se distanciar uma das outras. A maioria delas era coberta de palha.
Enfim, a praia... Não era um lugar bonito porque havia lama e vários canais antes de chegar ao mar. Sabia que já havia tomado banho ali vezes sem conta. Achava que já tinha ido nesse lugar dirigindo um carro que não conseguia identificar. Um velho caminhão de cara comprida, ou um ônibus. Fosse o que fosse, não sabia como isso tinha acontecido, já que ele sequer sabia dirigir. E se soubesse, jamais dirigiria num lugar daqueles.
Não, decididamente, as vivências dessa cidade não vinham de sua memória.
Era difícil achar as saídas dessa cidade. Sabia que tinha uma pista comprida, que atravessava o centro comercial, onde o transito era mais movimentado, e que levava a uma outra pista perimetral.
Pôs-se a andar na pista que passava na frente do quartel. Caminhou com segurança e firmeza, já que conhecia aqueles lugares como a palma de sua mão. Chegou ao local onde um pequeno rio desaguava no mar, onde existia um porto bem grande, para navios de pequeno porte. Mas não eram os grandes barcos amazônicos que estava acostumado a ver, mas sim navios oceânicos, embora pequenos e bem velhos. Mas, e disso tinha certeza, não eram navios pesqueiros.
Já estivera nesse porto várias vezes, sempre à noite e com muita confusão. Se forçasse a memória, lembrava-se de acontecimentos nessa cidade, embora tudo meio nebuloso, como as lembranças do porto, onde via pessoas aglomeradas tentando forçar a entrada em um navio, como se fosse um movimento de estivadores em greve.
Às vezes tinha lampejos em que aparecia todo o lado que se descortina para quem atravessava o centro da cidade, em que ela parecia uma cidade comum, já conhecida.
Lembrava bem de uma casa próximo da praia de mar. Bastava atravessar uma rua não muito larga, ultrapassar uma barreira de terra dura, com uma vegetação rala em alguns trechos e fechada em outros, e que se prolongava até o mar. Mas aí ele já era adolescente e estava fugindo para ir à praia. Escutava até o barulho do mar tão logo atravessava a rua.
Teria inventado essa cidade? Já havia sonhado com ela várias vezes. E o mais engraçado é que conhecia outros trechos dela que nem apareciam nos sonhos. Sonhos que, aliás, de tão reais, agora o motivavam a fazer, urgentemente, uma descrição completa.
Precisava de uma resposta. Precisava entender as sensações estranhas o invadiam, o gosto de nostalgia evocado por cenas do sonho. Que loucura! Como pode alguém sentir saudades de algo que nunca viu? E era exatamente isso que sentia quando vislumbrou o navio envolvido na névoa da madrugada no porto...
O barulho da jararaca interrompeu suas divagações. Ele acordava cedo, mas ela sempre conseguia acordar mais cedo ainda. E por cedo que fosse, estivesse ele fazendo o que estivesse, ela sempre conseguia algum motivo para ranhetar.
- Vam’bora! Vem tomar café! Queres perder o título de funcionário padrão?
Ela não perdia a mínima oportunidade de espezinhá-lo. Por mais comezinhos que fossem seus sonhos, ela sempre conseguia um jeito de zombar. Ironizava agora com seu sonho frustrado de ser eleito o funcionário padrão da repartição. Mas ela sabia que ele não havia chegado atrasado e nem faltado ao serviço nenhuma vez por três anos consecutivos, e que agora ele tinha mais chances do que nunca. Era assim já no café da manhã, e no almoço, ela zombaria do fato de que ele não recebia uma promoção há anos. No jantar, provavelmente, seriam gracejos sobre o tédio que havia se instalado na vida sexual do casal, acabando de vez com qualquer possibilidade de ter ele um desempenho aceitável no embate amoroso daquela noite. Provavelmente dormiria mais uma vez com a boca amarga e sensação de vazio no estômago.
Por isso queria tanto ser escolhido o servidor padrão. Se isso acontecesse, jogaria na cara dela.
Guardou atabalhoado o papel que mal havia começado a escrever. Completaria a descrição do sonho mais tarde, no escritório. Lá, tempo é que não lhe faltaria, afinal, nunca havia mesmo muita coisa para fazer. Foi só o tempo de colocar o papel no bolso de trás da calça e passar o braço pela primeira manga do paletó e lá estava ela, com sua figura gorda toldando a luz do sol, plantada na soleira da porta, olhando para ele com aquele olhar inquisidor.
E se ela tivesse visto? Entregou-se imediatamente, batendo precipitadamente a mão sobre o bolso onde acabara de guardar a prova da culpa que se apresentava estampada em seu semblante.
Tomou café com um ar ausente. Também não tinha muito a conversar. Além disso, ainda teria um dia inteiro para agüentar a palhaçada do pessoal do escritório, onde, ultimamente, vinha se generalizando os gracejos de corno. Com ele, então... Olhou disfarçadamente para sua mulher... Quem seria o louco de ter alguma coisa com aquela gorda, mal humorada e de cabelos desgrenhados com uma cor indefinida?
Olhou-se no espelho antes de sair. Estava cada vez mais calvo. Virou de perfil. Estava cada vez mais barrigudo. Tirou os óculos e constatou que aquelas lentes grossas, pesadas, não só estavam criando uma marca feia em seu nariz como também aumentando a sensação de olhos empapuçados. Enfim, nunca tinha sido bonito. Mas, agora, baixinho, careca, barrigudo, cegueta e tímido, era, sem dúvida, uma figura patética. Não era para menos que o pessoal do escritório o tomasse para pagode...
Olhou em volta. O forro carunchado, pedia uma pintura nova. As paredes, cheias de infiltração, davam à casa um aspecto triste. Precisava arranjar dinheiro...
- Que foi? Tá achando sujo? Vem limpar, vem... Não adianta ficar procurando teias de aranhas nos cantos da casa... Pensa que é fácil? A gorda, pelo jeito, queria briga de manhã cedo a todo custo.
Saiu apressado, quase correndo. Não queria esquecer os detalhes daquele sonho estranho. Precisava, urgentemente, escrever tudo.
Aquela foi uma das manhãs razoavelmente felizes de sua vida. Isolou-se escrevendo, ou melhor, descrevendo a cidade em todos os seus detalhes. A cidade que teria morado em sua outra vida, ou a que teria vindo na memória do espírito que havia tomado o seu corpo durante a noite... E à medida que escrevia, descobria mais e mais detalhes do sonho. Era como se continuasse sonhando uma viagem. Era como se estivesse viajando dentro de um sonho.
Voltou ao porto, passeou no burburinho da fauna portuária. Estivadores, vendedores, prostitutas. Foi quando viu aquela mulher na porta da barbearia. Ela o conhecia, já que sorriu para ele com uma expressão da mais autêntica felicidade. Caminhou na direção dela.
Sentia uma sensação inusitada, o bem estar da autoconfiança, a garantia do sucesso na abordagem de uma mulher. Ela era uma prostituta e a única coisa que sentia por ela era desejo. Nada de preocupação com o que pensariam as pessoas em volta dele. Nenhum pejo em passar os braços em volta dos ombros daquela mulher com o rosto colorido como o de uma arara, e roçar sensualmente os lábios no pescoço dela. Sentir aquele cheiro de mulher vulgar... Ela se entregava docemente...
O estrondo foi mais assustador porque foi súbito. Ele, que já havia parado de escrever e se encontrava perdido no seu devaneio, onde o sonho noturno já se imbricava com o sonho diurno, teve um sobressalto tão forte que bateu com os joelhos na mesa, empurrando a cadeira e caindo espalhafatosamente no chão.
As risadas, a chacota. Todos riam. Ninguém sequer se aproximou para ajudá-lo a levantar-se. Ainda no chão, olhando em volta, viu a causa do seu susto: um saco grosso de papel forte, inflado e com boca amarrada, que o palhaço do escritório havia pulado em cima.
- Que qu’é isso me’rmão? ‘Tá ficando doido? Pra quê esse desespero? ‘Tá com a consciência pesada? O palhaço tinha companhia. Na verdade, seria até suportável se ele fosse o único mau caráter do escritório.
- Eu acho que é com a cabeça pesada...
- Eh? É isso mesmo? Vocês sabem de alguma coisa que eu não sei?
Ele ficava se perguntando o que teria feito de mal para eles. Por que eram tão cruéis? Não podia ser só porque ele era o único que não sabia se defender. A vontade que tinha era de encher a mão na cara do palhaço. Não sabia nem como fazer isso. Disse a única coisa que veio à cabeça, à guisa de vingança:
- Só podia ser tu... Cadê meus trinta? Dissestes que ias me pagar semana passada e até agora nada!
- Ah! Olha só o careca! Sai fora, chato! Vou te pagar quando tiver o dinheiro!
- Eu quero o que me é de direito! Verbalizava tentando dar uma impostação de exigência em sua voz.
- Agora o careca pirou de vez. Mas não é mesmo um chato? Direito! Direito o quê? Vai cobrar na polícia, vai!
Olhou em volta. Só via risos e chacota. Ele era o certo e ninguém lhe dava apoio. Ficou estático, mudo, com os olhos esgazeados mirando o nada. Acordou com o barulho das palmas que o chefe batia;
- Chega de bagunça! Vamos trabalhar que é... Vocês estão pensando que isso aqui é o quê? Um mercado?
Sentou vagarosamente, pensativo e assim permaneceu por longo tempo. Nem viu quando todos saíram para o almoço. Estava perdido novamente no sonho. Não foi difícil retomar o fio da meada. Afinal, bastava lembrar da sua cidade que as lembranças fluíam naturalmente. Se fitasse uma parede branca, então...
Voltou para o porto procurando de novo a barbearia, aquele povo simples, aquela prostituta... Não foi difícil achar o mesmo lugar, a mesma posição. Ficou em pé, esquadrinhando o local. Gostava mesmo dali.
Ah! O espelho da barbearia! Era ele, ali refletido? Sim, era ele. Ou melhor, outro ele, ou ele como poderia ter sido. Continuava sendo um homem de pequena estatura, só que não aparentava, porque agora estava bem magro. Continuava sendo careca, mas agora usava os cabelos restantes bem compridos e esticados em uma elegante trança que alcançava o meio das omoplatas. Os ombros pareciam mais largos, talvez pela grossura de seus antebraços, agora malhados e ornados com tatuagens de marinheiro. Continuava não sendo um homem bonito, mas era diferente. Seu olhar era diferente. Era agora firme, penetrante, resolvido. Agora agradava as mulheres de pronto.
Ah! A prostituta. Felícia, esse era o nome dela. Era filha de um marinheiro peruano com uma linda prostituta de ascendência eslava. A mistura estranha tinha resultado numa morena com aparência de cigana. O rosto trazia a tristeza de uma vida sofrida e ela praticamente pulou em cima dele. Estava ávida por carinho. Estava precisando desesperadamente daquele marinheiro fanfarrão e mentiroso, que nunca tinha nada para lhe dar, mas que a fazia feliz com a sua simples presença. E ele iria se esmerar nisso mais no que nunca, na noite que se aproximava. Levou-a pela mão. O destino era certo: a mesa de carteado. Ela daria o dinheiro para jogar e ficaria pendurada nele até acabar, com os olhos brilhando, ao sabor da fortuna. Depois, ganhando ou perdendo, fariam amor até a exaustão...
Dessa vez, nem todo o barulho do mundo seria capaz de trazê-lo de volta. Aliás, todo mundo do escritório finalmente havia se reunido em volta dele.
- Acho que ouvi ele balbuciar algo sobre jogo ainda há pouco! Mas agora está assim, sem falar nada, há um tempão! Acho que pirou de vez! Era o palhaço do escritório, olhando o rosto dele de tão perto que parecia querer entrar em seus olhos esgazeados. Na verdade, nem sequer demonstrava piedade, parecia só querer entender o que estava acontecendo, preocupado, talvez, com a possibilidade de ser contagioso.
- É isso, muitas dívidas! A pessoa que quer ostentar um padrão de vida que não pode, dá nisso. Se endivida toda, enlouquece com o aperreio dos cobradores.. Era a caloteira da repartição que projetava nele seus próprios medos.
- Dívidas? Que dívidas nada! Isso foi é chifre... O palhaço do escritório precisava se isentar de qualquer culpa no caso. Afinal, como era de conhecimento de todos ali, ele devia ao careca enlouquecido, nada mais nada menos do que trinta mangos, e vinha se esquivando sistematicamente de pagar havia meses.
É... É isso que dá, casar só por interesse. Ele casou com aquela mulher rica, só pelo dinheiro dela, e tá ai, desse jeito... Eu vi quando ele estava lendo um bilhete anônimo, que ele trouxe no bolso da calça, hoje de manhã. Ele até me mostrou, dizia que a cabeça dele estava que era uma floreira, de tanto galho... Até o zelador do escritório dava a sua opinião, mostrando como era inteirado das coisas.
- Meu Deus! Ele não pisca nem quando a mosca anda na sua pálpebra! Impressionante! E a pensar que isso pode acontecer a qualquer um de nós! Para alguns, a preocupação era mais científica.
E assim foi por toda a manhã. Dívidas. Chifres. Despedida iminente... Versões várias, conforme o gosto ou a fobia de cada um.
E o careca?
Ah! O careca foi embora. Não chegou sequer a saber o diagnóstico que foi dado ao que deixou por aqui. Esquizofrenia catatônica. Que interessaria isso a ele? Seria apenas um título, uma classificação, um nome a mais.
Ele foi embora de vez. E por que ficaria? Está muito bem onde está. Aliás, lá nem é careca, lá o referencial é outro, não é pelos cabelos que lhe faltam, mas pelo que ele tem a mais... Pode ser encontrado no porto... Em qualquer porto! É só procurar por um marinheiro aventureiro e mulherengo, mas que nunca viaja, alcunhado lagostinha, uma menção ao seu físico, com um braço levemente mais grosso que o outro, muito conhecido nas mesas de carteado e pelo mulherio da área portuária. Lá ele é amigo do rei...
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